domingo, abril 01, 2007

A Leitura


Como aquele antiquíssimo burro, talvez o da minha infância,
ave imortal não nascida para morrer
que imovelmente me fita da lembrança,
alguma voz anterior fala no que posso escrever

e no que posso ler; talvez o anjo cabalístico
tocando-me o lábio superior ao nascer
me tenha condenado ao destino paroxístico
e ocioso de repetir, repetir, repetir,
até, puro de novo, me calar por fim,
eu que, com minhas mãos, matei o albatroz,
que culpa penerá então a minha alheia voz
dos meus versos, nos vossos errando sem mim?
Não, não me peçais ainda concordância,
estarei ocupado de mais à minha escuta
no coração e na boca, no oiro e na cicuta,
e na escuridão dos livros, talvez os da minha infância.
Manuel António Pina, in Os Livros

Sem comentários: